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Cale-se

"Ela sempre foi assim". Ana ouvia a sentença sorrateira. Sabia que quando saía da cozinha as mulheres da família cochichavam algo sobre a sua "falta de compostura". "Não tinha mais jeito", uma vez ouviu escapar de uma tia. Para sobreviver, adotou um passível silêncio, cortado por um sorriso de boca cerrada e sutil aceno de cabeça.

Qualquer discussão encerrava naquele gesto. E era bom que fosse assim. A gentileza de Ana a salvara. Conseguia transitar em todos os níveis da família. Passou de problema a prodígio. Ganhou o pedestal das primas, das sobrinhas.

Aqueles momentos eram apneia. Vez ou outra, quando não conseguia mais segurar, acabava soltando um daqueles desassossegos. Contornava facilmente, emendando uma história escalafobética, inventada de pronto. Sabia inventar histórias, porque as imaginava a todo o momento. E sabia verbalizá-las. Das aulas que teve de teatro, tirava os artifícios cênicos que faltavam para que fossem convincentes.

De tão verdadeiras, ela as vivia. Um dia era a vítima, noutro, o algoz. Outra vez contou que havia tido um desentendimento com um professor que evitara responder uma questão por fugir ao tema proposto. A cena em questão acabava com a aluna dando de dedos na cara do homem grisalho. "Nunca me deixe sem respostas", ela brandou. Todos riram a petulância.

Obviamente, ela jamais teria ultrapassado tal limite. Sim, o tinha. Por outro motivo: estava na oitava série e aconteceu de ficar com um rapaz no ônibus na volta de um passeio. Ela foi tema da aula de ensino religioso. O tema girava em torno de como não se portar. Mesmo que não tivessem mencionado seu nome, sentia que toda aquela fala a podava. Não pensou duas vezes. Seguiu o professor na saída. "Por acaso você estava mandando indireta para mim?". Ela tremia da cabeça aos pés. O professor também. Foi a coisa mais corajosa e feminista que fizera em toda a vida. E só tinha 13 anos.

Mas nada chocaria tanto quanto aquilo que achou passar ileso. Três taças de vinho e sentiu uma leveza tão rara que começou a falar de si, com a sinceridade que nunca teve.

- Eu entro em aventuras que não dão em nada. Justamente porque sei que não darão em nada.

A mesa silenciou. Ela deu um sorriso de boca cerrada e acenou com a cabeça, acabando com qualquer possibilidade de voltar a falar sobre si.


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